Por Flávia Gonzalez Leite – Conselheira Corregedora do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão
O direito à moradia, expressamente previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988, integra o rol dos direitos sociais fundamentais e representa uma das mais importantes conquistas do constitucionalismo social brasileiro. A definição do conteúdo normativo desse direito, contudo, exige uma compreensão que transcenda a mera provisão habitacional. Nesse sentido, o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que "a definição do conteúdo (objeto) do direito à moradia não pode, de modo especial por força de sua vinculação à dignidade da pessoa humana, prescindir de parâmetros qualitativos mínimos para uma vida saudável". Para Sarlet, "entre os critérios estabelecidos pela Comissão competente da ONU, destacam-se a segurança jurídica para a posse, a disponibilidade de uma infraestrutura básica que assegure condições adequadas de habitabilidade, o acesso a serviços sociais essenciais e o respeito à identidade e diversidade cultural da população" (SARLET, 2015, p. 344). Tal concepção evidencia que a Constituição Federal estabeleceu não apenas uma aspiração programática, mas uma obrigação jurídica dos entes federativos de assegurar condições dignas de habitação que contemplem aspectos qualitativos essenciais.
Complementando essa visão, Felipe Maciel Pinheiro Barros destaca que "o direito fundamental social à moradia integra o conjunto dos direitos ligados ao mínimo existencial para uma vida com dignidade", enfatizando que este direito possui natureza vinculante e exige implementação concreta pelo Poder Público, não se restringindo a mera diretriz programática (BARROS, 2014, p. 72). A dimensão constitucional da moradia abrange aspectos urbanísticos, ambientais e sociais que garantam condições de habitabilidade compatíveis com a dignidade humana, exigindo políticas públicas integradas e coordenadas entre os diversos entes federativos.
Nesse contexto, é necessário reconhecer que a expansão urbana desordenada gerou situações de informalidade que demandam resposta urgente e estruturada do Poder Público. A dimensão do problema é evidenciada pelo fato de que milhões de brasileiros permanecem em situação de informalidade habitacional, vivendo em áreas desprovidas de infraestrutura básica, sem saneamento, iluminação pública ou segurança jurídica na posse de seus imóveis, configurando grave violação da dignidade humana. Dados do IBGE (Censo 2022) confirmam essa realidade ao apontar mais de 5 milhões de domicílios localizados em aglomerados subnormais no país, áreas com ocupação irregular e carência crônica de infraestrutura, como água tratada, esgotamento sanitário e rede de energia elétrica. Além disso, estima-se um déficit habitacional superior a 5,8 milhões de moradias (FJP, 2023), e mais de 33% dos domicílios brasileiros não possuem ligação com rede de esgoto (IBGE, 2023), escancarando o tamanho do desafio e a urgência de políticas públicas planejadas, integradas e efetivas. É indispensável reafirmar que não se trata apenas de entregar um papel, um título de propriedade frio e isolado. Trata-se de garantir condições reais e dignas de vida. A política de REURB só cumpre sua missão constitucional se for compreendida como um processo integrado que inclui urbanização e infraestrutura como parte inseparável de sua essência. A dignidade mora também no saneamento, na luz, na rua calçada. Não basta o título registrado se não houver o chão urbanizado.
O direito à moradia é direito social fundamental (CF/88, art. 6º), mas sua efetivação depende de políticas públicas planejadas e executadas de forma coordenada, que contemplem desde medidas normativas até prestações materiais concretas, abrangendo desde a titulação de terras até a implementação de infraestrutura urbana essencial. A Constituição Federal também define como competência comum da União, Estados e Municípios "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico" (art. 23, IX). Aos Municípios, compete especificamente "promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (art. 30, VIII).
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) reforça essa obrigação, estabelecendo como diretriz geral da política urbana "a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendidas como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos" (art. 2º). Essas normas evidenciam que não se trata de faculdade política, mas de um dever jurídico vinculante, que integra o núcleo essencial do direito à moradia assegurado pela Constituição Federal a todos os cidadãos.
A regularização fundiária urbana, disciplinada pela Lei nº 13.465/2017, é instrumento central para efetivar esse direito. Seu art. 9º a define como "conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes". O art. 10 lista objetivos amplos e concretos: "a promoção da integração social e a geração de emprego e renda; a melhoria das condições urbanísticas e ambientais; a resolução de conflitos fundiários; a garantia do direito social à moradia digna e das condições de vida adequadas". O art. 13 impõe ao Município o dever de classificar o núcleo informal como REURB-S ou REURB-E e aprovar o respectivo projeto de regularização, demonstrando o caráter cogente dessa obrigação administrativa. A Lei ainda preconiza, no art. 11, §2º, que "os Municípios, Estados e Distrito Federal poderão estabelecer programas e parcerias para implementar a Reurb", incentivando a atuação coordenada entre entes federativos e instituições públicas.
A inação estatal frente à informalidade urbana, ao déficit habitacional e à ausência de infraestrutura básica configura verdadeira violação massiva de direitos fundamentais. Essa omissão estrutural se assemelha ao estado de coisas inconstitucional reconhecido pelo STF na ADPF 347: problemas complexos, derivados de causas múltiplas, que exigem políticas integradas, planos locais e coordenação interinstitucional para sua superação. Nesse contexto, não basta a promessa de regularização fundiária: exige-se planejamento, alocação orçamentária, execução coordenada e monitoramento permanente para garantir que a regularização vá muito além do papel registrado e se converta em transformação concreta dos espaços urbanos, com infraestrutura e serviços públicos que permitam o florescimento de comunidades mais justas, seguras e humanas.
Diante dessa obrigação constitucional e legal, os Tribunais de Contas assumem papel estratégico para a efetivação da política pública de regularização fundiária urbana. Como órgãos de controle externo, têm competência para verificar a aplicação dos recursos públicos e avaliar a eficiência e a efetividade das políticas públicas municipais. Mais que recomendar, podem e devem exigir a elaboração de planos municipais de REURB vinculados ao planejamento urbano (PPA, LDO e LOA), com metas claras e orçamento compatível; a inclusão de ações de regularização fundiária em instrumentos de planejamento e gestão territorial; a realização de diagnósticos e levantamentos cadastrais como condição para boa gestão; a destinação de recursos próprios ou de parcerias para viabilizar a implementação; e o monitoramento e a cobrança sistemática do cumprimento dessas obrigações.
O TCE/MA já sinaliza esse compromisso ao elaborar cartilha específica para orientar os gestores municipais, demonstrando sua função pedagógica e preventiva, mas também estabelecendo as bases para uma fiscalização mais incisiva e consequente.
No Maranhão, a implementação da política de regularização fundiária urbana tem avançado com um modelo de cooperação institucional que pode e deve ser referência. O Tribunal de Justiça do Estado, por meio do Núcleo de Governança Fundiária (instituído pelo Provimento nº 24/2022), lidera o programa “Registro para Todos”, estruturado para apoiar os municípios na efetivação da REURB e garantir o direito constitucional à moradia. Esse programa foi viabilizado juridicamente pelo Termo de Cooperação Técnica nº 0031/2022-TJMA, que possibilitou a adesão articulada dos 217 municípios maranhenses, assegurando que a REURB se consolidasse como política pública efetiva em todo o território estadual. Dos municípios aderidos, 73 já possuem ações em curso, com resultados concretos e expressivos: mais de 38 mil títulos urbanos entregues, 55 territórios quilombolas titulados beneficiando 751 famílias, 7 territórios indígenas registrados com segurança jurídica para 7.768 famílias, além do registro de obras públicas de educação e esporte e de templos religiosos, reafirmando o respeito à diversidade cultural e o compromisso com a função social da propriedade.
Destaca-se ainda o reconhecimento nacional dessa iniciativa: em 2023, o programa “Registro para Todos” foi agraciado com o Prêmio Solo Seguro, concedido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como referência de boas práticas em governança fundiária. Trata-se de um exemplo claro de que a regularização fundiária não é apenas ato jurídico-cartorial, mas política pública de inclusão social, paz e justiça.
Nesse esforço, o Tribunal de Contas do Estado do Maranhão também desempenha papel essencial. Mais que órgão fiscalizador, o TCE/MA tem assumido função pedagógica e indutora ao produzir cartilhas, orientar gestores, recomendar boas práticas e monitorar o cumprimento da legislação — sempre ressaltando que não se trata de uma faculdade política, mas de uma obrigação constitucional vinculante dos entes federativos. Em perfeita sintonia com o Judiciário estadual, o TCE/MA busca garantir que os gestores municipais planejem, financiem e implementem projetos de REURB com seriedade e compromisso, unindo titulação e urbanização, para que o direito à moradia se concretize não apenas como papel registrado, mas como vida digna.
Essa realidade se impõe como desafio concreto e prioritário no Maranhão, diante do elevado número de núcleos informais em áreas urbanas e periurbanas, muitas vezes desprovidas de infraestrutura mínima. A atuação do TCE/MA deve avançar para estimular a criação de núcleos municipais de REURB, promover oficinas e capacitações regionais, apoiar o planejamento integrado e exigir dos gestores municipais o cumprimento de seus deveres constitucionais e legais. A omissão municipal na implementação da REURB não constitui mera questão de discricionariedade administrativa, mas verdadeira violação de preceitos fundamentais, sujeita à responsabilização dos gestores públicos.
A regularização fundiária urbana não é favor estatal. É um dever jurídico decorrente da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional. Sua omissão compromete direitos fundamentais, perpetua desigualdades e limita o desenvolvimento social e econômico. Dessa forma, cabe aos Tribunais de Contas, e o TCE/MA já entendeu essa missão especial, exercer seu papel indutor, fiscalizador e pedagógico, exigindo dos gestores municipais o planejamento, o financiamento e a execução das ações de REURB como parte indissociável de uma política urbana inclusiva, justa e verdadeiramente transformadora.